I- Introdução
Buscar-se-á esclarecer, através do presente trabalho, tema que ora tem causado debates doutrinários e, por vezes, jurisprudenciais, acerca de objeto de extrema relevância para o mundo jurídico, que é a possibilidade de reconhecimento de vínculo empregatício àqueles que prestam serviços religiosos.
Propõe-se, assim, análise pormenorizada sobre o instigante tema, em vistas às peculiaridades de cada caso concreto, demandando uma releitura a partir da qual se deve distinguir a crença na fé de fins caracterizadamente empresarias de algumas atividades clericais.
II- O trabalho e o voluntarismo
Por influência italiana, o legislador pátrio editou a Lei n° 9.608/98, dispondo sobre atividade voluntária, como sendo, na forma do seu artigo 2°, a “atividade não remunerada, prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos, que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social” e decreta, através do parágrafo único do mesmo dispositivo, que “o serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista, previdenciário ou afim”.
Voluntário que seja, não há como ser inserido na categoria de trabalho subordinado típico, na forma do artigo 3° da CLT, exigindo-se os clássicos requisitos da prestação de serviço por pessoa física, pessoalidade, subordinação, onerosidade e não eventualidade. Tratando-se de lei específica excluindo taxativamente os trabalho voluntário do diploma celetista, a lei especial deve ser plenamente aplicada.
Na lápide sempre brilhante da iminente Alice Monteiro de Barros, “embora a Lei n. 9608, de 1998, tenha ‘estremecido os alicerces’ do art. 2, §1°, da CLT, que estendia o vínculo empregatício aos que prestassem serviços em entidade de beneficência, entendemos, entretanto, que, à semelhança da lei italiana, o legislador brasileiro não exauriu todas as hipóteses de trabalho gratuito e voluntário que possam ocorrer, entre os quais o serviço de cunho religioso...”.1
Concordamos com a observação feita pela doutrinadora, com duas ressalvas cunhadas: i) a de que, obviamente, seria impossível ao legislador o tratamento de todas opções de serviço de cunho voluntário, até em virtude do dinamismo da sociedade que faz surgir, em um ritmo que não pode ser acompanhado pela lei, inúmeras modalidades de trabalho. Infelizmente, muitas delas são colocadas em segundo plano, quando da necessidade de tratamento legal, conforme tivemos oportunidade de alertar2; ii) no que se refere à voluntariedade do trabalho religioso, abordaremos a possibilidade ou não de reconhecimento de vínculo empregatício ou voluntário gracioso adiante.
III- Atividade religiosa e sua natureza jurídica
Com a abdicação dos bens terrenos a partir do ingresso nas atividades tipicamente espirituais inerentes aos objetivos da Igreja, aqueles que aderem a essa finalidade passam a desenvolver profissão evangélica na comunidade religiosa a que pertencem.
Rechaçando posicionamento da doutrina francesa de que se trata de um “estado eclesiástico”, baseando-se na afirmação de que “o engajamento do religioso em torno da diocese e o seu estilo de vida não possuem relação com a profissão, mas correspondem à doação de si próprio com um sentido desinteressado, comunitário, e a submissão à autoridade hierárquica do grupo lhe imprime características, as quais se aproximam mais de um estado do que de uma função, pois a fé se integra à sua personalidade”3, trata-se, em verdade, de profissional liberal, ou seja, autônomo, visto que “utiliza sua energia pessoal sob sua própria direção”.4
Dessa mesma forma deliberou o legislador pátrio ao tratar os ministros de confissão religiosa e membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa como contribuintes individuais à Previdência Social, conforme artigo 9°, V, “c”, do Decreto 3.048/99 (Regulamento da Previdência Social), visto que são equiparados aos trabalhadores autônomos (Lei n° 6.696/79).5
Na forma como vêm entendendo a doutrina e jurisprudência quase que unânimes, o trabalho de cunho religioso não pode caracterizar um contrato de emprego, pois sua finalidade seria tão-somente a de prestar assistência espiritual e divulgação da fé, impossíveis de apreciação econômica.
Dessa maneira:
PASTOR EVANGÉLICO. RELAÇÃO DE EMPREGO. Inexiste vínculo de emprego entre o ministro de culto protestante – pastor – e a igreja, pois o mesmo como órgão se confunde com a própria igreja.
(RO 14322-01 – TRT 1a Região – 4a Turma – Relator Juiz Raymundo Soares de Matos – Publicado no DORJ 08/10/02)
RELAÇÃO DE EMPREGO - PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RELIGIOSOS - INEXISTÊNCIA - Não gera vínculo empregatício entre as partes a prestação de serviços na qualidade de pastor, sem
qualquer interesse econômico. Nesta hipótese, a entrega de
valores mensais não constitui salário, mas mera ajuda de custo
para a subsistência do religioso e de sua família, de modo a
possibilitar maior dedicação ao seu ofício de difusão e
fortalecimento da fé que professa. Recurso ordinário a que se
nega provimento.
RELIGIOSOS - INEXISTÊNCIA - Não gera vínculo empregatício entre as partes a prestação de serviços na qualidade de pastor, sem
qualquer interesse econômico. Nesta hipótese, a entrega de
valores mensais não constitui salário, mas mera ajuda de custo
para a subsistência do religioso e de sua família, de modo a
possibilitar maior dedicação ao seu ofício de difusão e
fortalecimento da fé que professa. Recurso ordinário a que se
nega provimento.
(RO - 17973/98 – TRT 3a Região – 2a Turma – Relator Juiz Eduardo Augusto Lobato – Publicado no DJMG em 02/07/1999)
VÍNCULO DE EMPREGO. ATIVIDADE RELIGIOSA. O exercício de atividade religiosa diretamente vinculada aos fins da Igreja não dá ensejo ao reconhecimento de vínculo de emprego, nos termos do artigo 3º da CLT. Recurso do reclamante a que se nega provimento.
(RO 01139-2004-101-04-00-5 – TRT 4a Região – Relator Juiz João Alfredo B. A. De Miranda – Publicado no DORGS em 02/06/2006)
PASTOR. TRABALHO VOLUNTÁRIO. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DEFINIDORES DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO. O alegado desvirtuamento da finalidade da igreja e o enriquecimento de seus "líderes" com recursos advindos dos fiéis, embora constitua argumento relevante do ponto de vista da crítica social, não afasta a possibilidade de haver, no âmbito da congregação, a prestação de trabalho voluntário, motivado pela fé, voltado à caridade e desvinculado de pretensões financeiras. Assim, estando satisfatoriamente provada a ausência dos requisitos definidores do vínculo empregatício, deve ser afastada a tese da existência de relação de emprego com a entidade religiosa.
(RO 7024/2005 – TRT 12a Região – Relatora Juíza Gisele P. Alexandrino – Publicado no DJSC em 20-06-2005)
Esse tem sido o posicionamento quase que unânime de nossos tribunais trabalhistas, não reconhecendo vínculo empregatício entre o ministro de confissão religiosa e a Igreja à qual pertença.
Destarte, existem raros julgados que contrariam a presente orientação, conforme se transcreve:
VÍNCULO DE EMPREGO. PASTOR. O fato de um trabalhador aceitar o cargo de pastor e ter exercido esse mister por crença religiosa e ideologia não afasta o vínculo de emprego, pois a lei não excepciona esta hipótese.
(Ac. maioria – RO 00068-2004-036-01-00-5, TRT 1a Região – Relatora juíza convocada Vólia Bomfim Cassar – Sessão de 15.05.2006)
PASTOR-CONTRATAÇÃO TAMBÉM COMO MÚSICO-VÍNCULO DE EMPREGO-POSSIBILIDADE. A atividade de gravação de CD´s em estúdio da igreja não se insere no espectro das funções eclesiásticas, razão pela qual, uma vez caracterizados os requisitos do art. 3o da CLT, não há obstáculo ao reconhecimento de vínculo de emprego entre o pastor e sua igreja no trabalho como músico.
(ACO-08298-2004 – TRT 9a Região – Relatora Juíza Sueli Gil El-Rafihi – Publicado no DJPR em 14.05.2004)
VÍNCULO EMPREGATÍCIO. CARACTERIZAÇÃO. PASTOR EVANGÉLICO. Em princípio, a função de pastor evangélico é incompatível com a relação de cunho empregatício, pois visa a atividades de natureza espiritual, e não profissional. Porém, quando desvirtuada passa a submeter-se à tipificação legal. Provado o trabalho do reclamante de forma pessoal, contínua, subordinada e mediante retribuição pecuniária, tem-se por caracterizado o relacionamento empregatício nos moldes do art. 3º da CLT.
(RO-27789/2002-002-11-00 – TRT 11a Região – Relator Juiz Eduardo Barbosa Penna Ribeiro – Publicado no DJAM em 10.12.2003)
É com base nos presentes acórdãos que se pode passar a rediscutir o tema em voga, visto que, como é cediço, o desvirtuamento da atividade tipicamente eclesiástica tem ocorrido com freqüência por determinados cultos.
Compila-se mais uma informação: no mês de abril de 1999, o Sindicato dos Ministros de Cultos Religiosos Evangélicos e Trabalhadores Assemelhados no Estado de São Paulo (SIMEESP) obteve registro sindical. Há aproximadamente 100.000 (cem mil) pastores evangélicos em São Paulo, sendo que destes, 3% encontram-se agora sindicalizados e, a partir disso, muitos formulam reivindicações trabalhistas, como a anotação da CTPS com reconhecimento de vínculo de emprego, estabelecimento de piso salarial, recebimento de gratificação natalina, férias e depósito de FGTS.
Esses pedidos solicitados pela categoria refletem uma realidade: a de que muitos clérigos exercem atividades tipicamente de emprego.
Não se busca defender aqui que a propagação da fé, por meio de cultos, palestras e até lições dos ideais da Igreja através de aulas ou seminários são atividades que, por si só, levam à possibilidade de reconhecimento de vínculo empregatício com as organizações religiosas, típicas pessoas jurídicas de direito privado (artigo 44, IV, do Código Civil de 2002).
Também não se objetiva argüir sobre a possibilidade de configuração de vínculo de emprego entre sacerdotes ou freiras que exercem trabalho de enfermeiras ou professores em colégios e hospitais, visto que o simples status de eclesiástico “não impede a possibilidade de se firmar um contrato de trabalho, como qualquer outro trabalhador subordinado laico”.6 Este é um fenômeno admitido pela doutrina italiana recente, mas ainda rechaçado pela brasileira, que ainda se baseia na presunção de gratuidade, independente se o trabalho seja prestado em favor de outrem.
O que se busca, em verdade, através do presente trabalho, é tratar da possibilidade de reconhecimento de vínculo de trabalho subordinado típico entre a determinadas entidades religiosas e seus ministros de fé.
Para embasar a presente possibilidade, afirma-se o seguinte, sem receio de desacerto: muitos sacerdotais prestam atividades que extrapolam os limites da divulgação da fé e ideais da entidade religiosa à qual se vinculam.
Sabe-se da existência de um estatuto interno existente em algumas Igrejas, através dos quais aos eclesiásticos são concedidas remunerações percebidas mensalmente e a possibilidade de ascensão funcional, além de serem exigidas a exclusividade, o necessário respeito a ordens emanadas pelos bispos ou entidades hierarquicamente superiores – inclusive sob pena de punição, como descontos em suas remunerações –, a realização de gravações e venda de discos e cd´s da entidade religiosa, além de shows e festas ao redor do país (com nítida finalidade arrecadatória), dentre outras tantas condutas.
Além disto, em sendo alcançadas as metas – mensais, semestrais, anuais ou por evento – que lhes são estabelecidas, há a concessão uma infinidade de benesses, tais como carros do ano, colégio particular dos filhos (arcados pela entidade religiosa), apartamento novo e remuneração extra equivalente e percentualmente ao arrecadado. Não ocorrendo o seu cumprimento, entretanto, são revogados todos aqueles benefícios, podendo o ministro religioso, inclusive, sofrer com a separação de suas famílias.
Pois bem. Em casos como tais, pode-se notar a configuração dos elementos típicos da relação de emprego: a prestação por pessoa física, subordinação, a não eventualidade, pessoalidade e onerosidade. Quanto ao último, como o próprio Mauricio Godinho ressalta, “é claro que o pagamento que descaracteriza a graciosidade será aquele que, por sua natureza, sua essência, tenha caráter basicamente contraprestativo”.7
Nessas hipóteses, deve-se fugir da máxima de Cabonnier através da qual “o direito não foi feito para os heróis, nem para os santos, mas para os homens medíocres que somos”.8
Assim sendo, em situações tais, indelével se faz a aplicação da proteção juslaboral celetista conferida aos trabalhadores subordinados típicos. Da mesma forma, Vólia Bomfim Cassar acrescenta que “entendemos que caso o pastor, o padre ou o representante da igreja receba pagamento em dinheiro, moradia ou vantagens em troca dos serviços prestados, o trabalho será oneroso. Seu trabalho é de necessidade permanente para o tomador de serviços, logo, também é habitual. Além de pessoal, o pastor, padre ou representante da igreja presta serviços de forma subordinada. Sujeita-se aos mandamentos filosóficos, idealistas e religiosos de sua igreja, sendo até punido caso contrarie alguns mandamentos. Também está subordinado `realização de um número mínimo de reuniões, cultos, encontros semanais na paróquia. Se, aliado aos demais requisitos, não correr o risco da atividade que exerce, será empregado”.9
Assim sendo, o desvirtuamento das finalidades religiosas, fontes do trabalho dos ministros devotos da pregação da fé, fornece elementos suficientes para que se afaste uma atividade eminentemente gratuita em detrimento da relação de emprego que emerge.
IV- Conclusão
Em virtude do presente e acima exposto, buscou-se trazer elementos convincentes à mudança da mentalidade estrutural que se tem acerca do trabalho dos ministros religiosos, ainda que de forma sucinta, mas objetiva, direta e clara.
Mostrou-se que, em óbvio desvirtuamento das finalidades eclesiásticas de algumas entidades religiosas – ressalte-se aqui que são algumas, não todas, sequer a maioria –, em relação aos seus pastores e presbíteros, deve ser concedida a proteção da mesma legislação que aos trabalhadores subordinados típicos (leia-se empregados), visto que, em situações tais, se amoldam perfeitamente nessa modalidade de trabalhadores.
Referências Bibliográficas
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 2a ed. São Paulo: LTr, 2006.
CARBONNIER, J. Théorie des obligations. Paris: PUF, 1969. n. 86.
CASSAR, Vólia Bomfim. Curso de Direito do Trabalho. Niterói: Impetus.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 4a ed. São Paulo: LTr, 2004.
FREITAS, Cláudio Victor de Castro. A clássica distinção entre relações de trabalho e relações de emprego: a necessidade de revisitação do critério da subordinação jurídica.Jus Vigilantibus, Vitória, 5 mar. 2007. Disponível em: http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/23518 .
PINTO, José Augusto Rodrigues. Curso de Direito do Trabalho. 5a ed. São Paulo: LTr, 2005.
Notas de rodapé convertidas
2 FREITAS, Cláudio Victor de Castro. A clássica distinção entre relações de trabalho e relações de emprego: a necessidade de revisitação do critério da subordinação jurídica.Jus Vigilantibus, Vitória, 5 mar. 2007. Disponível em: http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/23518 . Acesso em: 27 abr. 2007
5 CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 32a ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 30.
8 No original: “Le droit n´est fait ni pour les héros, ni pour les saints, mais pour les homes médiocres que nous sommes”, in CARBONNIER, J. Théorie des obligations. Paris: PUF, 1969. n. 86, p. 55.
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